terça-feira, 19 de maio de 2009

A Caverna e a Borboleta




O dia já se esvaíra pelos corredores da noite. Tudo era silêncio. A luz pálida da lua testemunhava o ritmo cadenciado da cidade que dormia, ao som do farfalhar das folhas, que brincavam descompromissadas com a brisa fria da noite invernal, tornando o silêncio ainda mais denso, quase melancólico.

Mas apesar do silêncio, ou por causa dele, antigas questões me soavam n’alma. Perguntas tão antigas quanto a própria humanidade ou ainda mais, que numa espiral sem fim, dançavam tremeluzentes nos painéis de minha mente exausta. Depois de tanto tempo de caminhada, tudo o que restava eram dúvidas, dúvidas e mais dúvidas. Quanto mais eu bebia da fonte da sabedoria, mais sede surgia. Quanto mais conhecimento eu podia abstrair dos Sagrados Mecanismos da Vida, mais ignorância eu podia perceber.

Eu quase podia tocar a ignorância que saltava aos olhos de minh’alma opressa. O vácuo de conhecimento que aos poucos eu podia perceber quase asfixiava. Eu estava definitivamente exausto.

Ao meu lado o antigo teclado de letras quase apagadas, minha caneca de louça trincada, repleta de café já meio morno e o “tictac” imaginário do relógio parado na parede engordurada da cozinha, antigos companheiros de insônia e solidão, que observavam silenciosos minhas reflexões inquietantes sobre os problemas do ser do destino e da dor.

Mas em foi em meio às muitas inutilidades criativas veiculadas na rede mundial que eu descobri que na consciência da própria ignorância existia em potência, a sabedoria que poderia existir em ato. Quando aquela figura de meia idade, meio desajeitada, visivelmente deslocada entrou no palco naquela noite, todos sabiam o que ia acontecer. Todos tinham certeza de que uma pessoa como aquela: feia, idosa e caipira jamais poderia fazer nada de excepcional, não poderia haver talento além dos preconceitos de jurados, platéia e telespectadores ansiosos por mais um clamoroso fracasso. A sentença estava dada, era questão de tempo. Esgares de desdém apareciam indisfarçados em todos os rostos presentes.

Quando o prisioneiro recém liberto retorna para abrir os olhos de seus companheiros para a vida fora da caverna, recém inundado pela verdade que quase lhe ofuscara os olhos, ele pôde encontrar a mesma reação. Os mesmos olhares altivos, os mesmos risos de desdém. Todos tinham nascido na caverna, construído suas visões de mundo pelas ilusões da caverna e, de dentro de suas limitações, julgavam conhecer toda a verdade que havia para conhecer, prisioneiros de seus preconceitos, acorrentados à sua ignorada ignorância. Platão não conhecia a cultura de massa, os realities shows ou os shows de calouros, mas era um profundo conhecedor da natureza humana, demonstrando isso no seu Mito da Caverna.

Quando aquela lagarta desajeitada começa a cantar, rompendo a crisálida de preconceitos que a tentava prender, os risos desdenhosos dão lugar ás bocas abertas de espanto. Prisioneiros de seus preconceitos ninguém conseguira enxergar a beleza que se escondia atrás da forma repelente da lagarta. Suas asas tocavam o céu, enquanto ela cantava sobre sonhos e tigres, despertando em todos a consciência de sua própria ignorância.

Apenas quando reconhecemos o quanto ainda nos falta conhecer é que temos condição de ampliar nossos horizontes de sabedoria. Somente quando olhamos pra dentro e sentimos o vácuo de sapiência que ainda nos preenche é que teremos alguma chance de aprender algo, de crescer enquanto pessoas, profissionais ou em qualquer outra área. A caminhada da Auto-iluminação, da formação profissional ou do amadurecimento emocional é mais do que uma busca contínua de conhecimento, é um contínuo reconhecimento do quanto ainda estamos encharcados pelas mentiras que pensamos ser verdade.

Para haver sabedoria é preciso haver, antes de tudo, ignorância, por mais paradoxal que isso possa parecer. Para sábios nada pode ser ensinado, aos doutos apenas o prazer, tão ilusório quanto mentiroso, do conhecimento que julgam conhecer, dos mistérios que insistem em ocultar do vulgo.

Para sairmos da caverna em que ainda nos abrigamos, devemos reconhecer que vivemos nela, que gostamos dela. Mas enquanto isso não ocorre, muitas borboletas continuarão voejando, nos mostrando o quanto de mentira existe nas verdades que julgamos incontestáveis, mostrando que apenas olhando a vida com olhos de criança é que poderemos vê-la em toda a sua grandiosidade.